quarta-feira, 22 de abril de 2009

Dica de Leitura 79 - O Aprendiz de Samurai


Pessoal,
Esse maravilhoso livro, escrito pelo meu amigo e sensei do jiu jitsu Max Trombini, é uma maravilhosa auto-biografia que conta, com o apoio do habilidoso escritor Wagner Hilário, a vitoriosa trajetória de um menino sem perspectivas, que através de seu esforço, dedicação e talento no tatame conseguiu conquistar todos os seus sonhos. Uma verdadeira lição de vida, que em breve estará nas principais livrarias.
E para dar um gostinho aos leitores, vejam esse capítulo, aleatoriamente selecionado:
Capítulo 13
A espada contra as baionetas

As ruínas são restos
mas não do que acaba
e sim do que morre
pra recomeçar
Oswaldo Montenegro

O Natal de 1991 e o Reveillon que desaguariam no olímpico 1992 foram as melhores festas de fim de ano da minha vida. Não vi os fogos de artifício iluminarem a noite de ano novo nem a esperança embriagada das pessoas com garrafas de champanhe nas mãos. Treinei nas vésperas das festas e durante as festas de fim de ano. Submeter-me a isso foi apenas parte do preço pago para chegar ao pré-olímpico, e confesso que tal sacrifício não chegava a ser exatamente um sacrifício. Era, mesmo, uma alegria incomum. Afinal, festas de fim de ano eram sempre solitárias para mim. Aquelas não foram.
O fato é que o convite para o pré-olímpico não me chegou por carta nem trouxe letras garrafais nas primeiras linhas, tampouco me custou cifras que pudesse conseguir com os comerciantes de Ubatuba. O pai de meus amigos de Lorena, Edgar e Thomas, seu Horst Lucke, conhecia o prestigiado sensei da cidade de Santos, do litoral paulista, Paulo Duarte. Na época, os judocas que disputavam o pré-olímpico eram selecionados com base em seus desempenhos no circuito nacional e internacional, mas também por indicação.
Horst conversou com Duarte que se dispôs a nos avaliar. Ele gostou do nosso judô e fomos indicados. Comuniquei o fato ao meu sensei Josino, em sinal de respeito ao homem que me revelou o mundo do judô, e a Umakakeba, com quem treinava na época. Para eu, Edgar e Thomas participarmos da disputa pela vaga precisávamos de uma forte preparação. Então, fomos para Santa Isabel, cidade do interior de São Paulo, onde passei por uma intensa temporada de treinos sob o comando de Duarte cuja fama de grande sensei se comprovaria com a conquista dourada de seu pupilo Rogério Sampaio na Olimpíada daquele ano.
O treinamento com Duarte consistia em acordar às seis da manhã e correr dezesseis quilômetros em terreno cheio de morros. Das oito às nove e meia, fazíamos musculação, e das quatorze às quinze horas, praticávamos uchikomi (entrada de golpes). Das dezessete horas às dezenove: handori. Como as lutas se realizariam em janeiro, começamos a preparação em dezembro e comemoramos Natal e Reveillon no tatame, praticando a exaustão os mais diversos golpes, caindo e levantando; brindando o ano olímpico com kiais cheios de esperança.
Entre o cansaço e a ilusão, pedia a meu avô que me guiasse e me dotasse de força para agüentar bem a forte rotina de treinos. Recorria a ele sempre que sentia as pernas faltarem, sempre que o corpo mastigado pelos treinos ameaçava desnutrir minha fé no sonho. Quando revigorado, via-me no desfile de abertura das Olimpíadas, recebendo a medalha. Ouvia o som do Hino Nacional e a bandeira tremular sobranceira.
Nas horas vagas, eu, Edgar e Thomas conversávamos sobre tudo que já vivêramos. Estávamos juntos em mais uma jornada, compartilhávamos dos mesmos sonhos e não queríamos sofrer a mesma dor. Confraternizávamos como soldados pouco antes de mergulharem no campo de batalha. Nas horas vagas, também ouvíamos Almir Sater...

Ando devagar
porque já tive pressa
e levo esse sorriso
porque já chorei demais...
Cada um de nós
constrói a sua estrada
e cada ser em si
carrega o dom de ser capaz
de ser feliz...
Os instantes de paz e arte eram refrescos para almas que em breve se deparariam com uma realidade nada plácida. Assim foi, até que a grande guerra chegou.

Estávamos no Rio de Janeiro. O pré-olímpico seria disputado na Associação Atlética do Banco do Brasil (AABB) e, naquele sábado, logo depois de tomarmos café da manhã, partimos para a arena. Quando pisei no ginásio, senti o inevitável frio na barriga. Mais adiante percebi que não conseguia me concentrar. Embora sonhasse, embora me visse numa Olimpíada, sabia que ali eu era o fraco entre os fortes. A maior parte dos competidores dispunha de experiência internacional, eram atletas que conheciam na prática as táticas da elite mundial do judô e, mais do que isso, estavam habituados a conviver com a pressão psicológica que uma disputa desse nível traz. Eram judocas tarimbados, eram baionetas; eu, uma espada. Havia mais esperança do que chance...
Você sabe o que é no mundo, mas quando entra no palco, você é o que sonha...
Fui buscar meu quimono cujo pano com o nome do banco patrocinador do evento acabara de ser bordado nas costas. O pré-olímpico teria transmissão televisiva. Depois, fui para a pesagem e descobri que estava quatro quilos abaixo do peso mínimo da categoria médio. Um erro; deveria ter me inscrito como meio-médio. Porém, era tarde para pensar nisso. Devia esquecer a falha e me concentrar na jornada que consistia em ser o melhor de trinta e dois atletas com até oitenta e nove quilos, ser o melhor dos trinta e dois melhores. Logo na primeira rodada dezesseis dariam adeus à Olimpíada de Barcelona antes mesmo de terem chegado a ela. Os outros dezesseis passariam para a segunda etapa...
“Milton Maximiano!”
Eu me aquecia quando soou a voz no alto-falante me convocando para a primeira disputa eliminatória.
Meu coração disparou, como se corpo e mente demandassem mais sangue para fazerem vibrar com o máximo de intensidade o lutador que mais do que nunca eu precisaria ser naquele tatame. Fechei os olhos e pedi a Deus que não deixasse acontecer nada de mal a mim nem a meu adversário... O resto ficava por minha conta e risco.
A luta foi travada no início. Entrei disposto a estudar e entender o oponente, sem receio de que a luta se estendesse demais e depois me faltasse perna para superá-lo. Havia treinado como nunca e sabia que poderia aumentar o ritmo no fim do combate. Foi o que fiz e a poucos instantes do fim apliquei o golpe perfeito. Subi o primeiro degrau da escada mágica que me levaria ao céu olímpico.
“Lutou muito, Max. Hoje é o seu dia.” Ouvi de Thomas e Edgar ao sair da área de luta.
Dos dezesseis “sobreviventes” sobrariam oito, que seriam divididos em dois grupos de quatro. Os quatro de cada grupo lutariam entre si, e os que tivessem melhor desempenho em cada um dos grupos se enfrentariam numa melhor de três para definir quem ficaria com a vaga olímpica.
Descansei trinta minutos até soar a chamada para a próxima luta. Enfrentaria dessa vez um atleta de Santos que figurava entre os favoritos à vaga.
“Agora é a hora da verdade”, pensei, enquanto me dirigia para o tatame. “Vou para cima dele com tudo.”
Cumprimentei o adversário e... Hajime!
Precisava ser veloz, mas não precipitado. Por estar abaixo do peso, se eu quisesse medir forças, tinha grandes chances de ser derrotado. Estudei rapidamente a pegada dele e com menos de um minuto de combate entrei um veloz golpe. Consegui um koka, pontuação mínima do judô. Estava à frente. Diante das circunstâncias, decidi atacar o tempo inteiro, sem dar ao oponente muito tempo de raciocínio. Atacando-o incessantemente o obrigava a se defender, tirava dele o tempo de pensar em atacar-me. A estratégia surtiu o efeito desejado, pois a luta entrou nos trinta segundos finais comigo à frente no marcador. O koka me daria a vitória, não tivesse eu, já cansado, tentado saber quanto faltava para o fim do combate... Quando olhei para o relógio, abri a brecha para o ippon que pôs de costas no chão uma juventude de sonhos.
Meus olhos incrédulos pararam na direção da cobertura do ginásio; via os holofotes e a estrutura metálica. Daquela posição, não podia ver sol nem céu nem horizonte. Ouvi ainda uns kiais gritados nas áreas de lutas vizinhas. Antes de me levantar, ainda fechei os olhos, como se aos reabri-los pudesse ver outra realidade, como se aos reabri-los pudesse descobrir que um segundo de descuido não havia posto a perder uma vida de treinos... Levantei, mas ainda não sabia para onde ir.
Cumprimentei meu adversário de forma protocolar e saí. As pessoas batiam nas minhas costas.
“Quase, Max... Você lutou muito bem.” De que valia, eu estava fora, estava fora das Olimpíadas.
Precisava ficar sozinho. Com nó na garganta, fui para o vestiário. Sentei no chão, num canto, dobrei os joelhos, depus meus cotovelos sobre eles e formei com os braços o esconderijo das minhas lágrimas. Pensei em meu avô, em minha mãe, no desprezo de meu pai e nas pessoas que diziam que eu era louco de passar meus dias a treinar. Diziam que aquilo não ia dar em nada.
Enquanto estava imerso nas lembranças e na tristeza, lembro-me de ter recebido afago na cabeça de colega que até hoje não sei quem é. Podia ser até meu adversário, meu algoz. Mas quando levantei e decidi tomar um banho, não havia ninguém no vestiário...
A água que me limpava o suor se misturou às lágrimas que me limpavam a alma. Então, levantei as mãos para cima e gritei a dor que sentia naquele momento. As lágrimas cessaram e lembrei de uma frase, possivelmente dita por algum de meus senseis: “O campeão não é o que nunca cai. É o que cai, levanta e prossegue.”
Tudo na vida pode ser sorte ou azar, depende do que vem depois. Toda derrota traz lições para que o futuro se materialize em vitórias. Saí do ginásio com isso na cabeça; àquela altura, não me restava outra alternativa. Só pensando dessa maneira, poderia seguir em frente.
Terceirizar a culpa de nossos insucessos não nos fará bem-sucedidos jamais. A partir do momento em que nos responsabilizamos pelos problemas e pelo fracasso, responsabilizamo-nos também pelas soluções e pelo sucesso.
Refleti sobre a luta por várias semanas: não deveria ter lutado abaixo do peso, não deveria ter olhado para o relógio, não deveria ter feito isso, não deveria ter feito aquilo. O certo é que nada me traria de volta a vaga olímpica. Ela ficara no passado, junto com minhas lembranças. A verdade é que, para sublimar a dor da desclassificação, descobri que precisava encarar o pré-olímpico como uma possibilidade olímpica e não como uma expectativa. A expectativa, quando não se realiza, frustra. A possibilidade, mesmo quando não acontece, continua a ser uma possibilidade ou simplesmente deixa de ser. Não fere tanto.
Assim, após a desclassificação, eu tinha alguns caminhos, algumas possibilidades, a seguir: tentar uma próxima Olimpíada e me manter na difícil vida de atleta de um esporte mais amador do que profissional; buscar maneira de me sustentar, desonerar minha mãe de uma vez por todas e até, quem sabe, retribuir tudo o que ela sempre me deu; ou, finalmente, tentar as duas coisas ao mesmo tempo.
Não coloquei minha meta no topo da montanha, porque depois do topo é só ladeira.
Fui para a capital paulista, logo após a seletiva. Por ser filho de imigrante italiano, poderia adquirir dupla cidadania, o que me motivou a procurar o consulado da Itália, localizado em São Paulo. Estava disposto a emigrar para a Itália e me tornar professor de judô na terra de meus avôs paternos.
Não podia mais viver só de sonho. Aos vinte quatro anos, quase vinte cinco, o que eu tinha em bens? Uma mala de roupas e um quimono. O mais importante eu já conseguira, é verdade. Tinha um ofício, tinha amigos em todos os lugares pelos quais passei e havia adquirido valores que serviam como trilha segura para um futuro digno. Usaria essa fortuna para construir o que Benedito dizia ser o bem maior de um homem: a família. Para tanto, tinha de me esforçar por uma nova realidade financeira, que não se conciliava com a vida de atleta.
É muito mais fácil erguemos a cabeça e darmos um novo rumo a nossa vida quando não somos escravizados pelo dinheiro. É ainda mais fácil quando a isso se somam experiências adversas pelas quais conseguimos passar. Costumo dizer que não se pode duvidar de sujeito que enfrentou mais obstáculos existenciais do que se poderia supor. A cada obstáculo transposto, a pessoa ganha força interior, em vez de perdê-la. Não que seja preciso sofrer todas as dores do mundo para ser forte, para enxergar o mundo com mais sabedoria. Há homens capazes de aprender com o erro do próximo e se fortalecer sem sentir na pele. De qualquer maneira, a dor caleja e nos faz mais resistentes aos infortúnios. Quem já sofreu bastante e suportou o sofrimento conhece a trilha da felicidade.
Ao chegar em São Paulo, liguei para Júnior, o mesmo amigo que me apresentara o Jiu-Jitsu e que morava na cidade. Precisaria da ajuda dele nos dias em que ficaria em São Paulo.
“O que faz aqui, Max?”
“Vim para tirar cidadania italiana. Quero ir para a Itália, tentar a vida como professor, já que fui desclassificado do pré-olímpico.”
“Eu soube. Fiquei chateado.”
O papo continuou e logo ganhou profundidade. Ele me disse que ainda estava na Cia Atlética, uma das maiores academias da capital paulista, onde dava aula de Jiu-Jitsu.
“Aliás, que coincidência você ter me ligado justamente hoje. O professor de judô da companhia acaba de ser demitido... Você não quer trabalhar na Companhia?”
“Claro, é só me dizer como.”
Conhecia a fama da Cia Atlética e fiquei empolgado com a idéia.
“Vá a academia e procure o Miguel de Oliveira. É o coordenador de lutas e é um homem bastante correto. Talvez o conheça, ele foi campeão mundial de boxe.”
“Não o conheço, Júnior, mas vou conhecê-lo. Quando posso ir?”
“Hoje... Se conseguir, você pode começar ensinado a criançada e depois podemos montar uma equipe de Jiu-Jitsu.”
Ele me passou o endereço.
“Vou avisar ao Miguel. Direi a ele que você é uma indicação minha.”
Parti, sem pestanejar. Até porque, assim como um ippon pode ser aplicado num piscar de olhos, nossa vida pode virar de uma hora para a outra, e é preciso ter pernas vigorosas para correr na direção que nos foi indicada pelo destino; do contrário, de nada adianta se por a caminho. Sorte é isso, oportunidade mais preparo para aproveitá-la.

Um comentário:

  1. Muito bom... fiquei feliz em conhecer um pouco da historia de um homem que foi muito importante na minha formação como pessoa. Fui aluno do MAX por 7 anos, desde criança a adulto, e sempre tive orgulho de te-lo como professor, mestre e amigo.

    Ótimo texto, parabéns Max!

    Johannes Gmelin

    ResponderExcluir