sábado, 17 de janeiro de 2009

Conto 3 - A sobremesa

Conto: A SobremesaAutor: Rodrigo Guimarães MottaEscrito em: 1994

Botelho acordou às seis horas, como fazia todos os dias. Vinte minutos foi mais do que suficiente para ele cumprir rigorosamente sua rotina. Dobrou os lençóis, escovou seus dentes, lavou o rosto, colocou terno azul e camisa branca – todos os seus ternos eram azuis e suas camisas brancas – e saiu para o trabalho.
- Botelho, venha cá que quero te apresentar nosso novo funcionário – disse Henrique, seu chefe no departamento de contabilidade da firma – esse aqui é Ramon, começa hoje a trabalhar.
Que horror! Ramon tinha a sua idade, ia trabalhar a poucos metros dele, mas como era desalinhado! Barba por fazer, dentes amarelos do cigarro. Não fez força para esconder sua repulsa, até que Ramon rompeu o silêncio.
- Muito prazer. Vou gerenciar o setor 1, o Henrique me falou que você é o gerente do setor 2. Tenho certeza que nós vamos nos entender muito bem.
- O prazer é meu – Botelho mal conseguia permanecer em pé, tão indignado estava. Ele, ultra-alinhado, cinco anos de firma, diploma universitário embaixo do braço, tinha conseguidoa muito custo o cargo de gerente do setor 2. Agora vinha um estranho, sujo, com dentes amarelos e de cara assumia o cargo que imaginava ser seu no topo da carreira: gerente do setor 1, o responsável pelos clientes mais importantes da firma. Não, aquilo não estava certo.

O Botelho comia no bar da esquina, do meio dia, cinco minutos e trinta segundos até a uma hora. Estava levantando para sair, cara emburrada por causa das más notícias da manhã, quando percebeu que o Ramon vinha gingando em sua direção.
- Ô Botelho, você vai ter companhia para o almoço, está bem?
Botelho gemeu um sim e lá foram os dois para o bar da esquina. Ramon, muito expansivo, não parou de falar, contou os anos que passara no seu outro trabalho, sua transferência para São Paulo e como agora decidira retornar à Porto Alegre.
- Você sabe de algum lugar para eu alugar? Estou num hotel do Centro e não quero ficar lá por muito tempo.
Botelho se lembrou que seu vizinho estava de mudança, ia voltar para o campo, mas aquele cara, morar do lado da sua casa, janela com janela? Nem pensar.
- Tem uma casa ao lado de onde eu moro que esta para alugar, se você quiser podemos ir lá após o trabalho. Idiota, idiota, idiota, o que está acontecendo contigo, Botelho?

Às cinco e trinta, pontualmente, o Botelho se levantou e foi chamar o Ramon para irem ver a casa que estava para alugar.
- Valeu cara, mas quero me colocar em dia com essa papelada. Deixe o endereço aqui que eu passo lá mais tarde – Ramon falou, sem sequer levantar os olhos do que estava fazendo.
Vermelho de raiva, ele escreveu o endereço num cartão, colocou na mesa do Ramon e foi embora, tinha que jantar às seis e meia.

Botelho estava em sua sala, comendo a salada que havia feito, janela aberta por causa do calorão de Fevereiro. O garfo congelou no ar, quando ouviu seu vizinho falando com outra pessoa, voz que também era familiar a ele. Levantou-se e viu, por cima do muro, o Ramon, uma mala em cada mão, balançando afirmativamente a cabeça.
Pela manhã, após ter cumpridosua rotina, dobrar os lençóis, escovar os dentes, colocar o terno azul e camisa branca, não conteve a curiosidade e foi bisbilhotar como andava seu novo vizinho.
Lá estava ele, o Ramon, lendo o jornal, ovos fritos e uma dose de...era mesmo! Tequila no café da manhã, e com aquela cara toda amarrotada. Após terminar sua bizarra refeição, ele calmamente enfiou o dedo no nariz, tirou uma imensa meleca toda verde e após um longo olhar carinhoso, comeu-a. Botelho fugiu correndo para o serviço.

Seu trabalho foi interrompido, à tarde, pelo chamado do Henrique, queria ver ele na sua sala. O Ramon já estava lá, e assim que chegou, seu chefe foi logo falando:
- Vou tirar duas semanas de férias, enquanto estiver fora, o Ramon, além do setor 1, fica encarregado pela análise dos resultados do seu setor, Botelho. Tenho confiança que vocês vão se entender muito bem, agora com licença, que tenho muito trabalho a fazer.
Botelho sentiu seus pés dormentes com a notícia. Só faltava essa, o come-meleca era agora o número 1 do departamento. Passou o resto do dia num transe, esqueceu até de colocar tomate na sua sala-jantar. Tentou ver novela, ler um bom livro sobre técnicas administrativas. Quando deu por si, estava do lado do muro, bisbilhotando o vizinho.
Ramon não estava só. Podia ouvir risos femininos e logo uma bela negra apareceu na sala, meio despida, Ramon logo atrás dela, esse sim já totalmente nu. Seu pudor não permitiu que ele assistisse a putaria até o final, então foi dormir.
A noite passou rápido, fora perturbado por estranhos sonhos onde estava amarrado na cama e Ramon e sua negra rindo e acariciando seu p.. Acordou sobressaltado, cumpriu seu ritual de manhã e foi bisbilhotar o vizinho.
Lá estava Ramon, o copo de Tequila vazio e a meleca imensa, verde e gosmenta em seu dedo. A visão durou menos de um segundo, o pequeno manjar foi degustado com ainda mais prazer do que no dia anterior.
Botelho foi ao trabalho decidido a não ter mais nenhum tipo de contato com o Ramon, exceto o estritamente necessário. Quando, no meio da manhã, o colega veio com seu gingado típico em sua direção, os dentes amarelos à mostra em um largo sorriso, Botelho amarrou a cara e esperou.
- Botelho, hoje vou ter um jantar na casa de um amigo, vamos ler algumas poesias, rir um pouco. Minha amiga – ele piscou o olho – tem uma prima do interior que está na casa dela, acho que você vai gostar de conhecê-la. Toco sua campainha às oito para irmos, ok?
Como ele fora aceitar esse convite? Há anos não lia nenhuma poesia, seu negócio eram os livros de contabilidade e administração. E sair com uma negra, pois se a amiga do Ramon era retinta, a prima só podia ser também. Mas afinal, já havia dito sim, ia ser seu primeiro encontro às escuras desde o tempo do colegial, isso é loucura, sua mãe diria.

Ás oito horas, a campainha do Botelho tocou, e lá estava Ramon com duas...loiras espetaculares! Aquilo era demais para ele, e no trajeto até a casa do amigo do Ramon, arranjou um jeito de perguntar a ele, sem que as loiras percebessem:
- Desculpe a intromissão, mas ontem estava regando o meu quintal, não pude deixar de eh, olhar por cima do muro e vi você com uma menina, que eh, não era essa sua amiga.
O embaraço dele foi cortado pela risada sonora e franca do Ramon. Não aquela era outra amiga, ele tinha mais de uma amiga, e daí?

Na casa do colega do Ramon, a leitura escolhida foi a obra do Mário Quintana, justa homenagem ao poeta recém-passado. As loiras, que além do rabo sensacional faziam pós-graduação em letras, liam os textos, Botelho não conseguia tirar os olhos de suas bocas sensuais, quão mais sensuais não seriam se estivessem chupando seu p.. afastou aquele pensamento com um abrupto movimento de cabeça, não estava certo pensar isso, ele mal conhecia as meninas!
Foram deixar as loiras em casa, não houve convite para entrar, mas o Ramon foi quem abriu a porta, tinha cópia da chave, puxou o Botelho, entraram e o primeiro logo se afastou com seu par, enroscados em beijos e chupadas, não se incomodando com a cara de constrangimento do Botelho, que olhava aquilo sem saber direito o que fazer.
Sua dúvida durou menos de um minuto e um segundo, a outra loira abraçou-o por trás, seus lábios mornos e molhados estimulando sua nuca, as mãos buscando seu peito, seu abdômen, seu membro...
Chegaram em casa às três da manhã, satisfeitos e felizes, os dentes amarelos do Ramon abertos em um largo sorriso se despediram do colega:
- Nada mau para uma quarta à noite em Botelho? Nos vemos amanhã no escritório.

Na manhã seguinte, apesar do pouco sono, ele acordou mais entusiasmado do que nunca, tirara o atraso, que noite tivera! Após cumprir seu ritual matinal (esqueceu de dobrar os lençóis, pela primeira vez em cinco anos que morava sozinho), foi ver como andava seu vizinho, e a cena não podia ser diferente; o copo de Tequila, os ovos fritos e o melecão na ponta do dedo indicador esperando sua vez.
Botelho pensou em tudo o que vivera até ali, sua vida rigorosamente planejada, sua rotina espartana, as poesias do Mário Quintana, os lábios da loira em sua nuca, o sucesso do Ramon no escritório. Aquilo foi suficiente para tomar a grande decisão: devagar, ritualmente, enfiou o dedo no nariz, após uma procura tímida mas constante lá dentro, tirou uma melequinha seca e comeu-a, mastigando bem.

Os dias que se seguiram foram de descoberta e expansão na vida de Botelho. As suas empreitadas noturnas, cada vez mais frequentes, trouxeram o sexo ao seu cotidiano, sexo bom, forte e sincero. Loiras, morenas, negras, suas mulheres se sucediam e ele encontrava espaço e carinho para todas.
Estava cada vez mais craque em comer melecas. Pela manhã, tirava enormes cacas verde-amarelas, as engolia bem devagar, chupando seu corpo por inteiro antes da deglutição.
Talvez fossem as mulheres, quem sabe as poesias, que ele agora lia à noite, no lugar da página econômica do Zero Hora, o fato é que estava evoluindo a olhos vistos no trabalho, nunca desempenhara com tanto entusiasmo suas tarefas, o escritório com a dupla Ramon-Botelho estava atingindo resultados incríveis. O Ramon, comedor de meleca, veterano que era, à frente, o Botelho não muito atrás, estavam colocando aquela estrutura burocrática ao avesso, administrando resultados com criatividade.
Quando Henrique voltou de férias, novamente ambos foram chamados a sua sala e receberam a novidade:
- Estou muito satisfeito com a dupla, há muito tempo o setor 1 e o setor 2 não apresentavam resultados tão consistentes. A partir de hoje, ambos vão ter um aumento de salário de vinte porcento, parabéns. E Botelho, se você continuar não penteando o cabelo, vai acabar ficando a cara do Ramon.
Esse aumento salarial, que em outros tempos seria motivo de festa para Botelho, foi recebido com reservas. Estava enfrentando uma grande expansão pessoal, é verdade que o Ramon o ensinara a comer meleca, mas sabia que podia ir mais além.
Seu potencial de leitor de poesia poderia crescer para ser o escritor de poesia; as diversas mulheres que passavam em sua vida, seria melhor levar mais a fundo a relação com uma delas. No trabalho, porque não cobicar o lugar do próprio Henrique?
Botelho percebeu que toda aquela vivência que conhecera e fora apresentado pelo Ramon fora fundamental para seu desenvolvimento. Entretanto, ele podia ir mais longe, até lugares onde Ramon nenhum pensara existir. Mas...como chegar lá?
Nesta noite ele passou muitas horas pensando sobre isso, nem quis sair quando o Ramon e as duas loiras vieram chamá-lo para uma festa. E então descobriu o caminho.

No dia seguinte acordou, cumpriu sua rotina de dobrar lençóis, escovar os dentes e lavar o rosto. Não colocou o terno azul nem a camisa branca, permaneceu nu. Foi até o muro que separava sua casa da do Ramon e mais uma vez o colega, terminando a Tequila, estava quase na hora da meleca matutina.
Botelho voltou ao seu quarto, olhou mais uma vez para aquelas paredes tão conhecidas, sabia que não as tornaria a ver com esses olhos. Então, devagar, começou a tirar a maior meleca do seu nariz, foi buscar lá no fundo e saíram suas tripas, o contato com o ar as transformando em meleca, depois o coração-meleca, os pulmões-meleca, a bexiga meleca, das vísceras para fora quase tudo ia se transformando à medida em que ia saindo de seu nariz. Quando sua última veia se melecou, no lugar do Botelho, o que se via era a maior, mais verde e pingante meleca que já existira. E ele vibrava, feliz e cheio de vida.

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