sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Conto 6 - Porque me aposentei ou Bruce Wayne lê as manchetes do jornal

Conto: Porque me aposentei ou Bruce Wayne lê as manchetes do jornal
Autor: Rodrigo Guimarães Motta
Escrito em: 1994

Gotham City, oito e meia da manhã. Acordei hoje muito bem disposto, mas a vontade de regar meus alfaces e cebolinhas durou os segundos necessários para eu levantar da cama, abrir a janela e ver o dia frio e chuvoso lá fora. Tentei voltar a dormir, mas a maldita artrite deu para me incomodar. Já que o sono não vinha, coloquei meu roupão novo, todo preto com a cinta amarela e desci para a biblioteca Wayne.
Lá me esperavam um maço de folhas em branco e a caneta que ganhei de presente de Jim Gordon no dia que abandonei os telhados e becos escuros. Há tempos sinto que devo uma explicação aos habitantes de Gotham e aos leitores da DC COMICS, empresa que publica minhas aventuras. Perco oitenta mil por mês do meu contrato com a DC, mas em compensação ganhei uma horta maravilhosa no gramado sobre a Bat-Caverna.

Vamos voltar ao dia que antecedeu a saída do Homem-Morcego de circulação. A história que vou contar já foi escrita pelo meu biógrafo favorito, Frank Miller, no seu “O Cavaleiro das Trevas” – título bastante infeliz, pois detesto cavalos – foi a época do terrível blecaute na cidade seguido do incêndio que destruiu diversos bairros.
O pânico tomou conta da população. Cidadãos honestos, da nossa bem-nutrida classe média e alta, frequentadores da igreja aos domingos e com sua doação anual para a UNICEF em dia, refugiaram-se em seus lares. Quando cheguei para acalmar os ânimos, poucos se habilitaram a me ajudar. Um deles chegou a atropelar uma jovem grávida com sua mercedes, na ânsia de se proteger. E não voltou para socorrer a menina, que abortou a criança sem que eu nada pudesse fazer. Só encontrei portas fechadas na minha cara, toda aquela gente que passe a vida inteira defendendo dos ataques insanos do Coringa.
O blecaute passou, o incêndio foi controlado. Voltei para a mansão Wayne vitorioso, mas com minhas certezas abaladas. Será que defender os lares, a saúde e o status dessa gente era estar do lado do bem? Pode ser que tudo não passou de uma atitude precipitada pelo terror.

Alfredo trouxe café preto, resolvi ler os jornais para me acalmar um pouco. Soube que vereador de Gotham, candidato à reeleição fora obrigado a renunciar. Havia aprovado verbas para o bairro onde sua casa era localizada, o que fora reprovado pela população. Coerentes, vão a igreja aos domingos, logo tem que defender a moral e os costumes.
Na próxima página li que outro candidato à reeleição renunciara também. Ele beneficiara empreiteiras amigas em emendas na câmara da cidade. Os gritos indignados que surgiram em toda a parteo forçaram a desistir da candidatura. Correta nossa gente, que ainda por cima ajuda as campanhas da UNICEF.
Por algumas páginas cheguei a acreditar que a atitude dos meus protegidos na noite anterior fora única e portanto perdoável. A ilusão demorou até uma pequena nota de rodapé, sem nenhum destaque na página internacional. Uma frase apenas, nela contida a vida de cem mil pessoas que morreram de fome e peste em um pequeno e desinteressante país da África. A imagem da moça grávida e seu aborto acordou minha consciência definitivamente.
Perto de mais uma eleição para prefeito de Gotham, leio que um dos candidatos, feio e gordinho, estava com seu eleitorado cada vez menor. Essa seria sua segunda derrota. Na eleição passada perdera para um papo elegante, terno moderno e olhos arregalados. O tempo passou, seu opositor tinha papo moderno, ternos elegantes e diploma de sociologia.
O desânimo tomou posse de mim, pois o gordinho esteve do meu lado no incêndio, levou a menina ao hospital, ainda com o feto nos braços. E ainda por cima estava tão difícil combater esse palhaço que o tempo refinara. Seu negócio agora eram as negociatas no congresso, trazer muamba do exterior com a conivência da receita federal, tramas muito complexas para esse justiceiro mascarado aqui.
Abri uma garrafa de uísque, chamei Alfred e juntos tomamos um porre homérico. No dia seguinte, ainda com dor de cabeça, liguei para Jim Gordon. Ele sentiu muito, mas compreendeu minha atitude. Afinal, as primeiras mudas de repolho foram presente dele.
Por favor, perdoem esse combatente do crime que pendurou as chuteiras. Ou o bat-cinturão, como preferir. Porém, antes de me desprezarem, lembrem das portas batidas na minha cara no blecaute, da forme e da peste esquecida num país distante e da agonia de uma mamãe que quase chegou lá. Para quem quiser um conselho, cuidado com papo moderno e ternos elegantes.

Gotham City, nove e quarenta e cinco. Jim, não quero que siga o mesmo caminho que eu. Gente como você e o gordinho me impedem de dar um tiro na cabeça. Só não contem mais com minha ajuda. Vou continuar com meus repolhos e tomates. Deixo Gotham com o Coringa, eles se merecem.

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