segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Conto 5 - O Gato

Conto: O Gato

Autor: Rodrigo Guimarães Motta

Escrito em: 1994


O prédio, situado no centro da cidade, é imponente, com sua construção do início do século se destacando dos modernos edifícios envidraçados. Apesar do tempo já ter deixado cicatrizes em seus vinte andares, foi o escolhido pelo Soulcrusher, maior banco de investimentos do país, para instalar sua matriz. Nossa história começa no terceiro andar.

- Fábio, a operação com o Citi foi fechada?
- Ontem à tarde acertei os últimos detalhes – assim era o Fábio, jovem brilhante, com a energia dos vinte e seis anos, toda voltada ao trabalho. Estava sempre um passo á frente em suas tarefas.
O que ele não compreendia é porque outros, com menos resultados, já tivessem se mudado para o quarto, quinto, até mesmo para o oitavo andar. Ele, porém, continuava trabalhando na mesa de operações do terceiro, mesmo cargo e local desde que entrou no Soulcrusher, há quatro anos.
Nunca parou para avaliar sua situação. Sua consciência calvinista, adquirida com o pai, dizia que deveria trabalhar mais e mais; o esforço não tarda a ser recompesado. Numa manhã de inverno, quando recebeu a notícia de que um colega, há seis meses no emprego, foi promovido para o quinto, Fábio saiu muito frustrado, se permitiu um dos poucos momentos de dúvida em sua carreira.
- Que tremenda injustiça, será que nunca vão ver meus resultados? – o gemido de Fábio foi no boteco ao lado do prédio, onde almoçava sozinho, todos os dias. Não porque os outros não gostassem dele, pelo contrário. Era sempre convidado para almoçar por seus colegas, mas preferia o boteco por ser colado ao Soulcrusher, logo ele podia voltar mais rápido ao trabalho.
- Vão ver sim, basta que você os mostre as pessoas certas – uma vozinha insinuante falou ao seu lado.
Fábio se virou e viu Ramos, o ascensorista. Volta e meia trocava uma ou duas palavras com ele, pois o sujeitinho também almoçava no bar ao lado do edifício. A figura do palpiteiro não era das mais agradáveis: pequeno, úmido, óculos tortos que mal disfarçavam a malícia dos olhos. Ainda assim, Ramos tinha grande vaidade, usava botas de couro sempre engraxadas, seu uniforme, muito velho, estava passado e engomado. Daí os executivos o terem apelidado de “Gato”.
- Como fazer isso, você pode me ensinar, Gato? – sua voz era divertida e havia uma ponta de interesse.
- Sim, você é jovem, bonito e competente, pelo menos é o que todos falam. Façamos um trato: segue à risca meus conselhos, logo estará muitos andares acima do seu mais ambicioso sonho. Em troca, após a primeira promoção, me dará um quinto do seu salário todo mês.
Olhou para aquela coisinha desprezível ao seu lado, mas que falava com tanta segurança. Até agora só tinha trabalhado, trabalhado e não saía do mesmo lugar. Sua mãe, muito religiosa, sempre falou na interferência da mão divina quando o indivíduo mais precisasse. Talvez o Gato fosse a materialização dessa mão. De mais a mais, não tinha nada a perder.
- Aceito – e assim o Gato começou a agir.

Dr. Eduardo, presidente do Soulcrusher, subia no elevador do Gato todos os dias às sete e meia. Era sempre acompanhado pelo diretor de operações. Nesse dia só estavam os dois e o ascensorista no elevador.
- Você acha que devemos comprar ações do BCP?
- Sim, Eduardo. O preço está excelente e temos o capital necessário.
- É verdade, entretanto tenho dúvidas se esse é o momento certo.
- Com licença, Dr. Eduardo – a atenção de ambos se voltou para Ramos, que havia interrompido a conversa – a hora não é propícia para comprar ações, se esperar mais alguns dias, o preço vai baixar pelo menos cinquenta porcento.
- E como o senhor sabe disso? – perguntou um presidente entre irritado e curioso.
- É que eu almoço no mesmo lugar que o Fábio, da mesa de operações do terceiro. Ontem, durante o almoço, ele me falou que as ações do BCP vão custar a metade do preço na próxima semana.
Gato, na verdade, havia levado os diretores do BCP para a reunião com o Dr. Eduardo na véspera. No elevador ele ouviu que a situação era desesperadora, estavam falidos. Se não fechassem o negócio até sexta-feira, iriam aceitar metade do valor para poderem saldar suas dívidas.
- Muito bem, vou levar a opinião desse Fábio em consideração – se voltou para o diretor – Quero falar com esse rapaz hoje à tarde.
Às duas horas, Fábio estava na frente do presidente. O Gato, no almoço, orientou ele sobre o que falar.
- Então você acha que devemos aguardar para comprar o BCP? – seus olhos azuis estavam fixos no jovem loiro, rosto bonito e inteligente. Bom partido, pensou. Seus lábios finos e delicados mal disfarçavam o sorriso.
- Sem dúvida, Dr. Eduardo. O balanço do BCP indica que eles estão bastante endividados. A curto prazo, se não conseguirem o dinheiro, vão quebrar. Vamos aguardar uma nova oferta.
- Sabe Fábio, gostei da sua opinião, meu instinto também diz que devemos esperar. Foi um prazer conhecer você – a conversa estava encerrada, Fábio saiu da sala.

Na quarta-feira da semana seguinte o Soulcrusher comprou o BCP pela metade do preço. Fábio foi promovido para o décimo-quarto andar e deu um quinto do seu salário ao Gato, como haviam combinado.
- E agora, Ramos? Quero ir mais longe, uma diretoria estaria de bom tamanho – os dois estavam no boteco, almoçando.
- Não demora muito, Dr. Eduardo vai te convidar para jantar. Aceite, e se ele quiser esticar a noite em outro lugar, acompanhe-o.
- Está bem, vai ser um prazer jantar com o presidente, mas que história é essa de “esticar a noite”?
- Isso não interessa, apenas faça o que estou falando.
O Gato sabia das preferências sexuais do Dr. Eduardo, todos os diretores do Soulcrusher namoravam ele antes de serem promovidos.
De fato, o convite não demorou muito. Tudo ocorreu como o ascensorista havia falado. Após a sobremesa, o presidente sugeriu que fossem até sua casa tomar mais um drinque. Passaram esta e muitas outras noites juntos. Pouco depois, Fábio foi promovido para o décimo-nono andar, como vice-presidente executivo.
Passou a ir almoçar com a diretoria, no clube de campo. Mal via seu amigo Gato, apenas trocava um “oi” apressado com o ascensorista, no elevador. Eventualmente deixou de depositar a quinta parte do seu salário na conta do Gato. Este ficou preocupado, mas decerto era apenas um esquecimento do amigo.
Já que o vice-presidente não almoçava mais no boteco e elevador não era o local adequado para falarem de assunto tão delicado, Ramos teve que marcar hora. Três meses se passaram até que a secretária de Fábio encaixou o Gato entre uma reunião da diretoria e um almoço com investidores japoneses.
- Fábio, preciso muito falar com você.
- Claro, claro, Gato. Por favor, seja breve, não posso me atrasar para o almoço com os japoneses – o vice-presidente olhou para o relógio.
- Vou ser breve. Você não deposita o dinheiro na minha conta há meses. Sei que tem trabalhado muito, deve ter esquecido.
- De que dinheiro você está falando?
- Ora, a quinta parte do seu salário que você prometeu para mim, se o ajudasse a subir na carreira.
- Ah, esse dinheiro. Olha, eu já te ajudei um bom tempo, mas agora estou na vicê-presidência e não fica bem eu estar recebendo um ascensorista em minha sal. Se você puder me dar licença, tenho um compromisso em cinco minutos.
O Gato saiu da sala lívido, seu corpo todo tremia. Como ia comprar suas botas de couro, pagar o aluguel da casa onde seus pais moravam? Na hora do almoço ficou olhando os ônibus que passavam na avenida em frente ao prédio. Quando se jogou na frente do maior deles, quase nada sobrou para contar história. Seu corpo foi reconhecido pelas reluzentes botas que eram sua marca registrada.
No dia seguinte, foi admitido um novo ascensorista eo Fábio pouco depois assumiu a presidência do Soulcrusher.

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